22 de set. de 2011

mergulhei

Era sábado. Eu tinha voltado pra casa dos pais. Acordei, abri os olhos devagar, pra não perder nenhum segundo daquela sensação de leveza e proteção. O sol entrava pelas frestas e o gato miava estranhamente pros passarinhos no quintal. A água da piscina parecia um espelho e na cozinha tinha cheiro de pão caseiro. Liguei o rádio e coloquei o cd com as músicas que eu escutava desde sempre. Os anos oitenta percorriam minha família de cidade em cidade e era impossível resistir. Abri todas as gavetas da casa atrás, talvez, de algum tesouro. Achei um punhado de cartas velhas e, junto, uma foto. Tu. Havia muitos outros, mas tu te destacavas. Tinha rosto de menino, mas teu olhar cansado sempre será inconfundível. Acho, inclusive, que tu já nasceste com esse olhar. Usavas as mesmas roupas de agora e teu cabelo parecia muito bem cuidado. Tua cara de adolescente não mentia: era um apaixonado. Talvez por uma guitarra, talvez por uma mulher. Impossível ter certeza. Parecia muito feliz. Feliz de um jeito que eu nunca vi. A vida, aos poucos, nos tira sorrisos e nos dá rugas. As tuas eu vejo descaradamente. As minhas: escondo de todos. Certamente ali, naquela foto, tua maior preocupação se resumia às gincanas e às meninas. Com as primeiras, tenho certeza, tu nunca tiveste problema algum. Já com as segundas: nunca te acertou. Nem hoje, nem ainda. Gostou de muitas, quis várias, foi amigo de quase todas, conquistou poucas. Não que tu não seja um bom sedutor, pelo contrário. Teu jeito de falar, beber e fumar (que é, nas noites de sábado, o que conquista uma garota) é tão peculiar e intenso que assusta. Dá qualquer coisa como um buraco no peito pensar em te magoar. Foi assim comigo e com todas. Ninguém quis a barra de te ter sempre por perto porque conviver com bondade e meiguice em excesso é perigoso. Mulher alguma cogitaria tomar isso de você porque nada -nem amor- pagaria um preço tão alto. Enfim, tu erraste justamente no que todo mundo almeja: ser acima da média. E meu erro foi rejeitar cada bom argumento pra me distanciar de ti e, correndo o risco, chegar o mais perto possível. Era óbvio pra todos que eu falharia. E falhei. Todavia eu não fico triste. Desperdiçar a vida no lamento é mais que triste: é doentio. Por isso, de ti, contigo ou longe, duas coisas não vou esquecer: cabelos cacheados precisam de condicionador diário e convívio íntimo afoga. É quase um mergulho sem volta.
E o sábado acabou.

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