19 de out. de 2007

Conversa de mesa

Que tal se rezássemos, perguntou de brincadeira sentada na mesa. Me poupe de suas ironias, resmungou a mãe, que detestava aquela total despreocupação da filha em relação ao que era santo. Tu não vais conseguir mudar o mundo, começou o "homem da família", não tu que és apenas um grãozinho nesse universo todo. Ela percebeu que se resolvesse falar qualquer coisa mais uma discussão chata começaria. Mas não resistiu, a raiva já havia surgido: ah, quer dizer que eu não vou conseguir mudar o mundo, é isso? E por que não? Vamos digam, por que não? Vocês falam isso somente porque nunca fizeram nada que colaborasse para uma mudança, é isso. E agora, porque já estão acomodados demais pensam que ninguém mais conseguirá, que nada é possível. Qualquer pessoa pode mudar o mundo. Basta que ela tome a iniciativa de fazer as pequenas coisas necessárias -que o que vocês não fizeram, não fazem e provavelmente não farão. Os pais riram. Ela pensou, com ódio, que era só aquilo mesmo que restava a eles, coitados, o riso fingido e frouxo de quem tentava esconder a dor de se saber facilmente substituído. Tudo bem, disse, eu não quero discutir com vocês. Só gostaria de que percebessem que a mudança é possível e necessária. A mãe abriu a boca para falar mas o pai foi mais rápido: O que tu fazes para ajudar nessa grande revolução? Diga, agora. Ela baixou a cabeça, queria pensar numa boa resposta, mas acabou soltando o óbvio: juntar os lixos jogados na rua. É uma das coisas que eu faço. Vocês fazem isso? A mãe olhou pro pai e piscou, depois tossiu e resmungou, novamente,: eu duvido. Duvido que juntas o lixo na rua. Se nem em casa sabes direito onde fica a lixeira difícil saber numa avenida da cidade. Agora a garota quis gritar, levantar da mesa e esquecer todas aquelas pessoas. Mas não foi isso que fez. Juntou o resto da calma que havia e murmurou: como assim "não sei direito onde fica a lixeira nem em casa"? Ora, eu sou aquela que mais se importa com esse tipo de coisa aqui! Não há um lixeira no meu quarto, também? E junto, sim, essas merdas que vocês imundos atiram por aí para trancar os bueiros. O pai, antes sentindo um bem-estar falso, agora deixou de sorrir. A mãe, de rosto baixo, levou a colher cheia de arroz até a boca. Filha, eu pensava da mesma forma que tu quando tinha dezessete anos. Mas eu fui crescendo e vivendo. Fui vendo que o mundo é diferente, que as coisas não são bem como pensamos ser. Eu, teu pai, já tenho muita experiência de vida. Idade não significa experiência, balbuciou ela. Significa, e conversamos sobre isso daqui à vinte anos. Até lá tu já pensará bem diferente, rebateu o homem. Ela achou tudo muito triste, aquela almoço com as pessoas da sala de jantar, a televisão com imagens de pessoas mortas num acidente de ônibus, o cachorro na coleira latindo lá fora, o irmão com um gibi da Turma da Mônica numa mão e um copo de coca-cola na outra. Era demais pra ela. E perdera a fome. Levantou da mesa, não sei antes dizer: eu não vou me tornar isso que vocês são agora. Vou fazer de tudo para não me tornar um adulto, com essa cabeça fechada, com essa visão pequena. Se é assim eu acho que não quero crescer. Acho que não quero... Caminhou até o quarto, ligou o rádio com a música dos quatro cantores ao mesmo tempo que deitava na cama e adormecia, sonhando com um mundo bem diferente. Na mesa os pais discutiam sobre a garota bonita que se tornara Miss.

Um comentário:

Fischer disse...

Ainda podemos ser jovens ainda jovens ainda. Por mais que as lutas pareçam perdidas ainda pode haver lutas, e por mais que elas se percam na sujeira das grandes cidades e no vento sem sabor que está tomando conta do mundo (embora há pessoas que ainda procuram refúgios - mas que talvez, pensando diferente, deveriam querer que todo o mundo fosse um grande refúgio, quem sabe com flores), e mesmo que não faça diferença o que queremos (isso numa hipótese mais fatalista de mundo), ainda não se sabe o que seremos (e o que será, o que serão, todas as coisas que existem para se chamarem coisas).
E não deixe de fazer suas ações, mesmo elas não sendo nenhum tema de casa. O ruim é que às vezes podemos ter nojo de fazer algumas coisas, mas ao menos podemos ter um "bom coração". E humanismo não é egoísmo (não se preocupe que não entendeu porque nem argumentei).