14 de jul. de 2013

quarto

Era uma noite amena de inverno. Não chovia, não fazia frio nem calor e a umidade escorria pelas paredes velhas do apartamento alugado. A sala, vazia de almas humanas, absorvia a energia singular dos dois gatos, que - habituados à escuridão- corriam por entre os móveis jovens, mas gastos. A cozinha tinha as portas cerradas e guardava cheiros e sabores diversos. O bolo de laranja sob a mesa, as maçãs recém compradas no mercado, o quindim dentro da geladeira. No banheiro: restos humanos. Pêlos, unhas, pele. E o cheiro do sabonete vermelho. Do quarto vinha a luz do abajur ligado. A única iluminação da casa. Livros, blocos de anotações, os instrumentos musicais, as gavetas de meia. Cada coisa em seu lugar, bem como devia ser. Sob a cama, uma pessoa escrevia. Não tinha assunto, não tinha motivo, não tinha propósito e muito menos tinha dom. Mas escrever era expurgar os demônios, geralmente pensava. Era falar sobre nada pra pensar sobre tudo e, assim, conter o coração que frequentemente teimava em acelerar. O mundo é um lugar perigoso e viver machuca. Talvez o silêncio salve.

Apaguem o abajur.

"No alarms and no surprises
Silent silence"

2 de out. de 2012

Eu sai durante cinco minutos pra comprar um lanche cheio de gorduras, sal e essas coisas que fazem mal pro organismo e a cadela comeu meu fone de ouvido. O único fone de ouvido bom que eu tive na vida. Agora estou aqui, ouvindo Enjoy The Silence tão alto quanto posso, pra abafar o som contínuo dos carros da rua, que passam, passam, passam. Faz quatro dias que voltei a tomar essa medicação e passei metade desse tempo sem sentir a ponta dos meus dedos, rezando pra conseguir levantar da cama e, mais do que isso, ordenar meus pensamentos ao responder as perguntas sobre aquele texto que fiquei três dias escrevendo. Não sei se conseguirei. Hoje foi um dia difícil. Não há muitas pessoas com quem contar, mas grande coisa: nunca há. As coisas podiam ser menos complicadas. E eu só queria dormir.

12 de dez. de 2011

eu apaguei todas as fotos do blog sem querer. eu queria resolver, colocar imagens de novo. mas ando tão cansada que pensar em qualquer obrigação ou coisa que DEVE ser feita me angustia.

talvez eu devesse mudar de endereço. sair do blogger. talvez eu devesse simplesmente dar um tempo. em tudo. ou talvez eu devesse nunca mais escrever. esses textos adolescentes e melados me doem demais. porque eu já fui melhor. porque eu não sei mais ser.

7 de nov. de 2011

os outros

Vontade de ir pra Barcelona
pra (te) esquecer
ou correr até a esquina
e gritar
o guarda mais próximo vai ouvir
"a escova de dentes é só minha!"

vontade de comprar
lenços e mantas
calcinhas novas
uma dentição mais branca
e uma mala nova pra encher com todas essas coisas
e partir

você não tem tempo pra me dar
eu não tenho vontade de esperar
você perdeu o interesse
o meu eu vou matando
buquês de flores não são cambiáveis

que pena
o dos outros sempre é melhor

19 de out. de 2011

psicografado por Charles Bukowski

Eram nove da noite, eu tinha discutido com ele -como sempre. Daí eu te liguei. Eu sempre te ligava quando não tinha outras pessoas pra falar. Disse rápido pra tu te arrumar que nessa noite a gente ia sair. E eu não aceitava nenhuma desculpa, as quais tu sempre arranjava. Tu tinhas medo do que poderia vir. Fomos naquele bar que eu sempre detestei muito e tu mais ainda. No fundo a gente também se detestava, mas havia um acordo de paz mútua, de ligar quando precisava e de noites passadas que voltamos juntos pra casa quando um precisava lançar mão pra carregar o outro. Quando a gente entrou tu sacou que eu já havia bebido muito, mas não disse nada. Pelo contrário, me trouxe mais bebida. Nada mais importava naquela noite, então eu bebi mais e tu tanto quanto. A gente se detestava, por isso eu podia passar a mão no teu cabelo sempre que a gente se via. Tu sempre aceitava e eu sei que ficava com o pau duro. Era natural. Desde a primeira vez que nos vimos depois que tu virou homem e eu passei a beber nas festas: era assim. Eu te provocava, tu sentia tesão e a noite era sempre igual: eu voltava pro meu namoradinho e tu pra tua casa. Mas naquela noite ia ser diferente. Tu sabia. Quando completou três horas que estávamos lá, bêbados e completamente fatigados daquela gente falando alto, tu me pegou a mão e fomos respirar o ar da rua. Caminhando até a minha casa eu só pensava "tu vai me comer hoje". Tu não te fez de rogado. Numa rua escura e deserta me colou no muro, me virou de costas, abaixou minha meia e, por baixo da saia, enfiou teu pau fundo, duro há horas. Eu não gritei e tu não precisou tapar minha boca. Tu gozou rápido, mas meteu de novo. Duro. Foi então que eu gozei, duas vezes. Na segunda gozamos juntos. Mordeu meu pescoço, me virou e beijou minha boca. Arrumei minha meia calça, eu não tinha nada pra te dizer. Nunca tive. Eu te detestava. Tu o mesmo. Entrei em casa com o coração disparado. Amanhã seria um lindo domingo de sol.

22 de set. de 2011

cindy lauper

cada gesto dela
os mais animados possíveis
cada sorriso seu
justificadamente cansados
são uma dança triunfal da única coisa que eu nunca tive: um passado de sorrisos compartilhados ao som de cindy lauper.

mergulhei

Era sábado. Eu tinha voltado pra casa dos pais. Acordei, abri os olhos devagar, pra não perder nenhum segundo daquela sensação de leveza e proteção. O sol entrava pelas frestas e o gato miava estranhamente pros passarinhos no quintal. A água da piscina parecia um espelho e na cozinha tinha cheiro de pão caseiro. Liguei o rádio e coloquei o cd com as músicas que eu escutava desde sempre. Os anos oitenta percorriam minha família de cidade em cidade e era impossível resistir. Abri todas as gavetas da casa atrás, talvez, de algum tesouro. Achei um punhado de cartas velhas e, junto, uma foto. Tu. Havia muitos outros, mas tu te destacavas. Tinha rosto de menino, mas teu olhar cansado sempre será inconfundível. Acho, inclusive, que tu já nasceste com esse olhar. Usavas as mesmas roupas de agora e teu cabelo parecia muito bem cuidado. Tua cara de adolescente não mentia: era um apaixonado. Talvez por uma guitarra, talvez por uma mulher. Impossível ter certeza. Parecia muito feliz. Feliz de um jeito que eu nunca vi. A vida, aos poucos, nos tira sorrisos e nos dá rugas. As tuas eu vejo descaradamente. As minhas: escondo de todos. Certamente ali, naquela foto, tua maior preocupação se resumia às gincanas e às meninas. Com as primeiras, tenho certeza, tu nunca tiveste problema algum. Já com as segundas: nunca te acertou. Nem hoje, nem ainda. Gostou de muitas, quis várias, foi amigo de quase todas, conquistou poucas. Não que tu não seja um bom sedutor, pelo contrário. Teu jeito de falar, beber e fumar (que é, nas noites de sábado, o que conquista uma garota) é tão peculiar e intenso que assusta. Dá qualquer coisa como um buraco no peito pensar em te magoar. Foi assim comigo e com todas. Ninguém quis a barra de te ter sempre por perto porque conviver com bondade e meiguice em excesso é perigoso. Mulher alguma cogitaria tomar isso de você porque nada -nem amor- pagaria um preço tão alto. Enfim, tu erraste justamente no que todo mundo almeja: ser acima da média. E meu erro foi rejeitar cada bom argumento pra me distanciar de ti e, correndo o risco, chegar o mais perto possível. Era óbvio pra todos que eu falharia. E falhei. Todavia eu não fico triste. Desperdiçar a vida no lamento é mais que triste: é doentio. Por isso, de ti, contigo ou longe, duas coisas não vou esquecer: cabelos cacheados precisam de condicionador diário e convívio íntimo afoga. É quase um mergulho sem volta.
E o sábado acabou.